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Indústria
O PRESTÍGIO EM ALTA DAS PICAPES

Atendendo a diferentes gostos, consolida-se no país a indústria de transformação de picapes.

Reportagem de Luiz Maciel Filho / Fotos Milton Shirata

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O ex-goleiro Leão, hoje técnico do Palmeiras, escolheu um modelo com quatro portas, três bancos individuais na frente e — como se ainda faltasse um toque pessoal — mandou pintar num tom de marrom meio ocre, meio tijolo. E nesse veículo feito sob medida, uma picape de cabina dupla confortável como um automóvel de luxo (além dos assentos dianteiros tem um sofá-cama, também revestido de couro), mas com caçamba e um motor a diesel que ronca como um caminhão, que o treinador palmeirense prefere viajar com a família ou passear nos dias de folga, embora seja proprietário ainda de um Santana e uma Caravan.

O campeão brasileiro de boxe Adílson Maguila Rodrigues e o ex-ministro do Trabalho Almir Pazzianotto são outros nomes famosos apaixonados por essas camionetes espaçosas e sofisticadas — e, assim como Leão, não podem mais ser considerados excêntricos: essas picapes muito especiais viraram uma espécie de mania nacional e não há empresa transformadora que dê conta das encomendas que chegam de todas as partes do Brasil.

O curioso é que o sucesso das cabines duplas — e também das peruas construídas sobre os chassis originais da F-1000, da Ford, ou da D-20, da GM — veio justamente nos anos 80, quando a indústria automobilística brasileira parou de crescer. Como uma resposta do mercado aos quase cinco anos sem novidades — jejum só interrompido com o lançamento do Kadett —, as oficinas especializadas na conversão de picapes multiplicaram-se de tal forma que hoje ninguém sabe ao certo quantas são. O Sindicato das Indústrias de Materiais e Equipamentos Ferroviários e Rodoviários (Simef) calcula que os transformadores de picapes já passem de 100, sendo que só no Estado de São Paulo funcionariam cerca de 50.

“Já vi muitos transformadores nascerem, mas também já vi muitos quebrarem e fecharem as portas”, conta Pedro da Silva, dono de uma tradicional fábrica de capotas de fibra de vidro, a Fibrás. Satisfeito com suas vendas, Pedro não quis entrar no mercado de transformações, mas reconhece que se trata potencialmente de um grande negócio. “Quem não foi para a frente com uma oficina dessas deve ter aplicado muito mal o dinheiro das primeiras encomendas. Serviço é o que não falta”, observa.

A trajetória da Cemar, uma empresa de ltaquaquecetuba, na Grande São Paulo. que só começou a funcionar em 16 de fevereiro deste ano, confirma plenamente essa opinião: pulou de nove para 62 funcionários em quatro meses. Altair de Almeida Thó, o fundador da empresa, garante que atrair a clientela é a parte mais fácil do negócio. “Difícil é honrar o compromisso com o freguês e entregar a picape do jeito que ele pediu no prazo combinado”, afirma.

Profissional de vendas, Altair está se firmando como empresário na terceira tentativa de ganhar dinheiro nesse ramo. Nas duas vezes anteriores, ele se associou a ex-funileiros de talento, mas que não investiam na oficina no mesmo ritmo com que ele arrumava clientes. “Conclusão: os prazos não eram cumpridos e eu não tinha mais desculpas para dar. Num só dia fui chamado de safado três vezes e jurei a mim mesmo que isso não podia mais acontecer”, lembra ele.

Sobram encomendas. Difícil é fazer direito.

Para evitar as decepções dos clientes, a fórmula usada pelos transformadores é a mesma que os enriquece: apostar na expansão do mercado e aumentar a capacidade de produção. A Cemar, que iniciou suas atividades fazendo duas picapes por mês, hoje prepara 12 e espera chegar ao final do ano em condições de entregar uma por dia. A SR e a Engerauto, que estão entre as maiores do setor, produzem cada uma delas cerca de 130 cabines duplas e peruas especiais por mês — mas poderiam fabricar mais se a Ford ampliasse as vendas de F-1000 semiprontas destinadas à transformação. Além da SR e da Engerauto, apenas outras quatro empresas estão credenciadas a comprar as F-1000 pré-montadas: Sul-Americana, Demec, Furglass e Brasilvan. Juntas, consomem nada menos que 350 chassis dessa picape Ford — a quarta parte do que a montadora produz mensalmente.

Já o grupo Brasinca, que fornece carrocerias para praticamente toda a indústria automobilística nacional, é o único com acesso aos chassis originais da D-20, a picape da General Motors. Com eles, a Brasinca Veículos Especiais fabrica a cabine dupla Andaluz e a recém-lançada camionete Quarto de Milha, uma “supercabine simples” com espaço para dois pequenos bancos basculantes extras. Até o final do ano passado, a Brasinca produzia as peruas Manga Larga e Passo Fino, hoje vendidas com a marca GM e as denominações de Veraneio e Bonanza.

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Algumas oficinas têm status de fabricante.

A vantagem para os transformadores de comprar as picapes semi-prontas da Ford ou da GM não está no preço (custam praticamente o mesmo que os modelos completos), mas na economia de tempo e na possibilidade de realizar um serviço de funilaria mais perfeito. Além disso, esses compradores preferenciais ganham status de fabricante e podem oferecer a mesma garantia que as grandes montadoras dão às suas camionetes. “A montagem das nossas picapes tem um acabamento melhor porque não precisamos cortar o painel traseiro a maçarico. Com isso, evitamos ondulações nas emendas, um problema que os transformadores menores disfarçam com massa plástica”, nota Geraldo Oppenheim, diretor de Operações da Brasinca.

Mas, para os transformadores que não pertencem a esse clube fechado, há mercado de sobra a explorar. Eles são a opção natural dos donos de picapes usadas e mesmo daqueles que acabam de comprar uma F-1000 ou D-20 mas não querem gastar muito na conversão. Enquanto uma cabine dupla com a marca Brasinca, SR ou Engerauto é cerca de 50% mais cara que uma picape de série (com base no preço real, o que está na tabela mais o ágio de praxe), nas oficinas menores a transformação custa o equivalente a 25% de uma camionete nova, ou até menos.

A qualidade do serviço, naturalmente, varia de uma para outra — por isso é sempre importante conhecer as instalações das oficinas, conversar com outros clientes e perguntar sobre os laudos de capacitação técnica da empresa e de segurança veicular do modelo escolhido. Esses laudos, emitidos por institutos de pesquisa credenciados pelo Ministério do Desenvolvimento Industrial, garantem o licenciamento sem problemas das picapes e peruas fora-de-série.

“O emplacamento de veículos homologados está cada vez difícil e logo será impossível com a instalação de terminais de computadores nos departamentos de trânsito de todo o país”, informa Luís Eduardo Moraes Alves, secretário da Afavesp, a Associação dos Fabricantes de Veículos Especiais do Estado de São Paulo. Criada há dois anos e meio, a entidade reúne 21 empresas, 17 delas transformadoras de picapes. A Afavesp já homologou 35 modelos de cabines duplas e está providenciando o reconhecimento pelo Contran de outros 40.

A transformação melhora a segurança

Ao contrário do que se pode imaginar, a transformação de uma camionete de série em cabine dupla tem tudo para aumentar a segurança veículo. “O comportamento dinâmico da picape geralmente melhora porque o centro de pressão se torna mais estável e ela fica menos suscetível aos ventos laterais. No caso de uma colisão, a proteção aos passageiros também é maior”, explica Dawílson Lucato, da Fundação para o Incremento da Pesquisa e do Aperfeiçoamento Industrial, a Fipai, ligada à Universidade de São Carlos, no interior de São Paulo. Ao lado do Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP e da Faculdade de Engenharia Industrial de São Bernardo do Campo, a Fipai é uma das três entidades paulistas autorizadas a homologar veículos especiais e empresas transformadoras. No resto do país existem outros nove institutos com essa competência, também ligados a universidades.

A receita para uma boa transformação, segundo Lucato, está na escolha de uma chapa de aço de boa qualidade, na soldagem bem-feita, na proteção anticorrosiva adequada e num design equilibrado. “Se esses ítens forem seguidos à risca, uma picape feita a mão pode ficar tão boa quanto uma industrializada”, garante.

Nas vistorias feitas pela Fipai, os problemas identificados com maior freqüência são três: cabine mal soldada na parte inferior, cintos de segurança mal fixados (principalmente os do banco traseiro) e estepe preso em lugar inadequado (na parte externa da caçamba, ocultando os sinais luminosos de seta). “Quando ocorre o primeiro caso, o veículo não é aprovado porque a sua estrutura fica comprometida. Nos outros dois, o laudo é emitido com uma ressalva”, explica o técnico.

Mas, se a homologação de um modelo de picape especial dispensa a empresa transformadora de novas vistorias nos veículos daquele tipo que entrega aos clientes, estes não ficam livres das irregularidades que a oficina pode cometer. Por isso, a recomendação de um cliente antigo ainda é o melhor aval do serviço dos transformadores.

“As pessoas que procuram nossa oficina normalmente já se informaram sobre o nosso trabalho”, conta Sidnei Ribeiro, da Sidcar, estabelecido em Mogi das Cruzes, cidade vizinha a São Paulo. Sem citar os concorrentes, Sidnei reconhece que “algumas oficinas usam canos d’água no lugar de travessas de aço no reforço da estrutura e fazem o fechamento da picape com rebites, em vez de solda”. Aos interessados em reformar as suas camionetes, Sidnei aconselha acompanhar de perto o trabalho das oficinas.

A Sul-Americana, pioneira na transformação de veículos (começou há 27 anos, muito antes de virar moda) e uma das três empresas homologadas pela própria Ford (além da SR e da Engerauto), orgulha-se de ver que os jornais publicam poucos anúncios de vendas de suas picapes mais antigas. “Os compradores das picapes usadas feitas por nós são sempre parentes, amigos ou vizinhos de quem está vendendo”, calcula Fauzi Buchalla, diretor da companhia. Conhecida por fornecer veículos especiais para vários órgãos oficiais, a Sul-Americana também é procurada por clientes extravagantes, como um garimpeiro de Rondônia que encomedou uma cabine dupla em vários tons de verde metálico, equipada com televisão, videocassete e geladeira, e pagou com dois quilos de ouro.

Como no caso do garimpeiro — aliás, dono de garimpo — as cabines duplas personalizadas funcionam como indiscutível marca de sucesso para os novos (e velhos) ricos do país. Enquanto o perfil dos compradores de picapes de série é predominantemente urbano (94% das F-1000 são compradas por moradores da cidade, na maioria comerciantes), as camionetes e peruas especiais atraem os fazendeiros que vêm faturando alto com as seguidas safras recordes brasileiras.

“O nosso público é formado pelos representantes do setor da economia que mais cresce no país”, analisa Antônio Carlos Zarif, diretor da Engerauto. “Os compradores de cabines duplas buscam um veículo de trabalho para uso intensivo em situações que exigem versatilidade. Ou seja: para rodar no campo, na estrada e na cidade, levando carga e passageiros, sempre com muito conforto”, completa Marcelo Arantes Ferraz, gerente geral de Vendas da SR. Das 130 picapes e peruas vendidas pela SR por mês, praticamente a metade fica em São Paulo, sendo que o interior do Estado consome sozinho 36% delas. Se para os proprietários rurais, afinal, uma cabina dupla é vista mais como um automóvel, quem vive na cidade ainda costuma achá-la mais parecida com um caminhão. Seja como for, há cada vez mais brasileiros se deixando seduzir por essa insólita mistura de limusine com trator.

Escolha o melhor tipo

Diesel ou gasolina? Para a grande maioria dos proprietários de cabines duplas, não há discussão: a melhor escolha é o modelo a diesel, que custa 20% mais caro mas tem motor mais resistente e econômico. Mas se você quer uma picape para usa principalmente nos fins de semana, como veículo de lazer, a versão a gasolina pode ser mais indicada. Nesse caso, em vez de combustível você economizaria barulho e ficaria livre da trepidação característica das camionetes movidas a diesel. Esqueça a versão a álcool: ela está em baixa e acaba de ser abandonada também pela Ford, que voltou a oferecer a F-1000 a gasolina em seu lugar.

Embora de linhas menos atuais que as das camionetes D-20, da General Motors, a F-1000 é muito mais usada nas transformações em razão da política mais aberta da Ford na venda dos chassis originais. Para compensar o design ultrapassado (criado em 1967 e que deve prevalecer por mais dois anos, pelo menos), as modificações sugeridas pelos transformadores que trabalham com a F-1000 costumam ser mais ousadas.

Quanto às grandes peruas, com dois ou três bancos e cada vez mais componentes de fibra de vidro (a tendência é substituir as pesadas frentes das picapes originais por formas mais aerodinâmicas nesse material), não podem mais ser a diesel, por exigência do Contran.

Fonte: Quatro Rodas, ano 29, Nº 7, Julho/1989
Reportagem gentilmente enviada por Fernando Figueiredo

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